quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Do lado de lá

Entregou-se mais uma vez à loucura. Sabia que não tinha forças contra ela.
Apesar dos olhares e comentários alheios, sentia-se íntima e muito à vontade com esse estado.
Parece que realmente consegue se encontrar no caos.
"Ontem acordei assim, em cada parte do meu corpo há uma cor diferente. Meus braços alaranjados, as mãos azuis, pernas amarelas, tronco roxo, pés vermelhos. Gosto de ser colorida, assim me destaco das outras pessoas".
Mesmo com toda aquela casca de boa pessoa, esforçada e, por vezes, divertida, sabia que seu corpo não condizia com seu espírito. Aliás, este último não condizia com quase nada nesse mundo. Talvez, por isso, gostasse tanto de ter múltiplas cores.
Em certa ocasião, quando criança, prendeu o dedo na porta da cozinha, foi a primeira vez que viu seu corpo mudar de cor, o dedo bege e pálido acabou ficando com um roxo esverdeado, muito mais bonito que a cor original.

Durante essa mesma época da vida, descobriu que a música clássia era capaz de transportá-la através do tempo e espaço, contrariando toda a lei da física e  proporcionando conhecer lugares no futuro, reviver fatos do passado e outros lugares desconhecidos e sombrios que jamais imaginara.
Tinha gostos peculiares, como guardar todos os pedaços das unhas que foram cortadas, num pote de vidro para ervilhas em conserva.
Achava que as pessoas pudessem ouvir seus pensamentos, já que tentava imaginar os corpos nus quando os fitava fixamente e sem mover as pálpebras, e assim, sempre recebia o  comentário: "Pare de me despir com os olhos menina!". 
Em seu quarto, que era praticamente um santuário, haviam vinis, uma vitrola,  livros devorados pelas traças, algum resquício de brigadeiro, almofadas coloridas e muitas fotografias de pessoas desconhecidas.
Era outra mania que tinha: fotografava pessoas em bancos de praça, supermercados, lavando a calçada de casa... Dava  nome e  história a cada uma delas, transformava-os em personagens cômicos, maquiavélicos, gentis. Todos tinham as iniciais de seu nome marcados pela letra "T"- Teodora, Teófilo, Tenório, Tânia . Achava que era uma letra que tinha os "braços abertos", por isso, era a mais bonita do alfabeto.
Odiava cálculos e sempre se dava mal por isso. Em certa ocasião, acumulou uma dívida na casa de tintas e foi cobrada de maneira estúpida pelo contator do estabelecimento. Precisou se virar para livrar-se dos cifrões que passaram a persegui-la. Onde quer que andasse, eles estavam lá. Apareciam verdes e grandes. Era preciso piscar os olhos três vezes e mandar um beijo para o ar e, assim, desapareciam.
Começou a fabricar e vender doces caseiros para levantar o montante que devia na casa de tintas. Fazia brigadeiros variados e os enfeitava com forminha pomposa e brilhante. Os brigadeiros variavam mas ninguém sabia. Era seu segredo, seu toque especial, sua doce vingança. Às vezes misturava às receitas, pétalas de violeta, margarida ou azaléia e, às vezes, uma ou duas lágrimas quentes, usava sempre o dedo indicador para prová-las. Faziam sucesso e resolveu que viveria assim para sempre depois de pagar a dívida toda: faria doces especiais para sobreviver.
Certa vez, sentiu-se culpada por criar uma história trágica para uma senhora. Sua foto era em preto e branco e foi tirada enquanto saía de um farmácia no centro velho, com esparadrapos na mão.
Ela tinha sido agredida pelo esposo, cujo álcool e pornografia, não lhe saíam da cabeça. "Pobre Tereza, tão meiga e frágil, ainda por cima gasta seu escasso dinheiro com medicinas para as violências que sofre".
Escreveu uma carta anônima com letra caprichada num papel azul se retratando muito vagamente, apenas solicitando-lhe "desculpas". Alinhou-a junto à uma caixa de papelão enfeitado com papel manteiga e encheu de brigadeiros para presenteá-la. Nessa receita, havia acrescentado um toque de alecrim. Não sabia exatamente porque, mas tinha a recordação de que lhe deram um chá quando criança, para acalmá-la em meio a uma crise de choro.
Esqueci de mencionar que, após criar o pensamento mágico de que com três piscadelas e um beijo no ar, fariam com que os cifrões desaparecessem, adquiriu esse hábito pra escapar de toda e qualquer situação desagradável. Assim, quando via alguém maltratando um cachorro na rua, por exemplo, sem hesitar, piscava três vezes com força e saltava um beijo para o nada, despertando estranheza de quem a observava.
Os vizinhos comentavam entre si: "Coitada, sozinha há tantos anos que deve estar ficando louca".

Foi numa tarde de domingo que aconteceu um fato que mudaria seu destino e, o mudaria para sempre. 
Tinha ido ver o circo que estava de passagem na cidade. Gostava de assistir o equilibrista atravessar a corda bamba. De certo, identificava nele, semelhança com sua vida desequilibrada - vivia na corda bamba.
Naquele dia gastou dinheiro com maçã do amor, pipoca e duas balas de goma.
Chorou. 
Enquanto a platéia se borbulhava em risos, ela chorava. "Como é triste ter que viver assim, fazendo com que os outros se divirtam às suas custas, riam de sua cara... Mesmo com essa maquiagem de palhaço feliz, deve haver um homem triste e solitário que se conforma em ver a felicidade dos outros".
Ao descer da arquibancada naquele domingo a tarde, pensava que, ao chegar em casa, precisava estender a roupa no varal, já que ficaram de molho no tanque. Foi então, que de súbito, foi acometida pelo golpe de um animal feroz que escapou de sua jaula. Um leão furioso lhe furou o peito com uma abocanhada.
Chamaram a ambulância. Foi imobilizada e colocada numa maca para dentro do veículo. Para lhe prestar os cuidados, foram destinados uma enfermeira e um aprendiz de primeiros socorros. 
Colocaram uma agulha em seu braço, por ela passava uma mistura de soro simples e um tipo de anestésico para dor.
De repente, tudo em volta começou a brilhar. Ela entendia a situação, sabia tudo o que estava acontecendo e, não conseguia culpar o animal. "Já foi aprisionado pelas mãos de um caçador, tirado de sua família, carregado em uma jaula e domado pelas mãos de um tirano cruel a vida toda". Isso justificava sua fúria.
O brilho passou a ter vida. Seu corpo, a maca, o lençol que a cobria, tudo brilhava e se movimentava. "Como é bonito e especial essa visão. Como sou privilegiada!". Sorria, mas sem mover os lábios. Sorria com seu espírito que enxergava as cores com familiaridade e aconchego, como quem passa muito tempo viajando e retorna para o conforto de sua casa.
Piscou, mas somente uma vez. Piscou e não abriu os olhos. Não abriu os olhos nunca mais.

Na bolsa surrada de tecido velho, um documento amassado revelava sua identidade: Maria Cândida dos Santos, filha de Palmira Maria dos Santos e pai desconhecido. Natural de São Pedro da União. Minas Gerais.

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